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Conto: O Café - 1ª parte Não que o líquido escuro lá servido tenha um sabor diferente do de outro lado qualquer. Para alguém que lá vá, não é melhor nem pior. Para mim, é diferente. É o sítio que eu saboreio. É a mesa e a cadeira vazias de corpos e tão cheias de espíritos. É a grande janela por onde se vê a larga avenida. A mítica avenida que conduz a um Sítio de Sonho, mas só se abrandarmos um pouco e virarmos à esquerda. Só se apelarmos à recordação e à liberdade. Foi lá que «eu» nasci, talvez... Passei por lá, aqui há dias. Pelo café, digo, não pelo Sítio de Sonho que esse visito-o todas as semanas – outrora todos os dias – esperando encontrar os mesmos braços estendidos para a imaginação, seja ela boa ou má – na verdade, nunca é má nem boa, é ambas as coisas ao mesmo tempo – e para um amigo que procura outro amigo. Até hoje, as expectativas nunca sairam defraudadas. Então, passei por lá, aqui há dias. Pelo café, como já disse. Entrei naquele centro comercial mais pequeno do que aparenta ser, tão grande na lista de eventos que me encheram os últimos anos – praticamente desde que abriu – e subi as escadas rolantes, como subira outrora acompanhado e depois sozinho e depois novamente acompanhado, chorando soluços no ombro de um ou mais amigos sem que mais ninguém desse por isso. As escadas trepavam e eu deixava-me levar. Por trás de mim, o grande ecrã ria-se e passava filmes da minha vida passada sem que eu me apercebesse. Nem eu nem mais ninguém. Tudo o que conseguíamos ver era uma data de anúncios de t.v. sem imaginação, sobre detergentes ou lojas de electrodomésticos. Ah, mas isso era o que estava ao alcance dos nossos olhos. Eu sei que a minha vida estava a ser mostrada em filme a todos os que a não conseguiam ver. Eu sei que o grande monstro quadrado se ria às gargalhadas da tragédia que ali passei. Exagero, talvez. Dêem-me o benefício da dúvida. As mesas estavam cheias, como era habitual nas tardes de Verão ali refrescadas por um ar condicionado obrigatório. Mas não estávamos no Verão. Antes pelo contrário. A chuva batia com força, gritando na sua voz pesada e repetitiva: «É Inverno!». Então, todos aqueles seres escondidos em grossos tecidos, maioritariamente aos pares, refugiavam-se dela, da chuva pálida e pouco apetecida e buscavam um calor que não conseguiam encontrar sozinhos. À medida que a escada subia, mais mesas surgiam aos meus olhos, cercando-me, apontando as suas setas e ferindo-me. Os atiradores sozinhos nem inimigos eram. Estavam aos pares, por isso, as suas setas se ensanguentavam na minha alma pesada. Tudo isto sem que ninguém reparasse. A música que tocava? Sim, porque a melodia ajudava a esquecer que lá fora chovia e então o responsável aumentava o volume quando a chuva se enfurecia e diminuia quando esta se acalmava. A música que tocava? Nem reparei nela, não me apercebi da canção nem da voz que lhe dava corpo. Nao me pareceu ser nada de especial. Só música, mais nada. Ninguém se importava com isso, de qualquer maneira. Tudo o que eles procuravam – e eu, talvez – era um ruído de fundo que fizesse esquecer... a chuva. Cheguei ao topo. Ao andar de cima, já que como referi antes, o centro comercial parece maior do que verdadeiramente é. Após olhar em volta para os pares que me atacavam sem dar por isso, reconheci um ou dois ex-colegas de escola, uma ou duas ex-amadas e outros tantos conhecidos-de-vista. Não tive medo. A arma que mais me feria já eles tinham utilizado. Não me matariam, com certeza. Com a minha morte, perder-se-ia alguém diferente deles, alguém para atacar em momentos como aquele. Perder-se-iam demasiadas memórias e já não haveria ninguém para os invejar. Peço desculpa, para os admirar. É mentira. Invejei-os naquele momento. Mais do que nunca. E os seus lábios tocavam-se para me ignorar. Para me atribuir a importância que mereço por invejá-los. É verdade. Eu não deveria invejá-los. Só se inveja quem tem mais do que nós. E não é verdade que eles têm mais do que eu? Avancei. Por entres todos aqueles ingénuos inimigos, caminhei. E foi longa a caminhada de alguns centímetros. A grande luz retraía-me os passos. O néon brilhava mais do que nunca aquelas letras que, juntas, formavam o nome do café. O café que eu, se pudesse, baptizaria de novo, mudando o sentido àquelas letras que sem outras letras não fariam qualquer sentido para mim. Aquele café devia ter nome de pessoa. Ou de pessoas... Hesitei. Não entrei de imediato. Só o facto de eu ter ficado ali, especado, à porta do local onde ansiei chegar, tantas vezes, fez com que alguém reparasse em mim. O senhor da tabacaria ao lado. Nunca lá comprei nada. Passava apenas os olhos pelas letras grandes do jornal e seguia rumo ao sítio onde alguém sempre me esperava. Quase sempre – o café. Depois de alguns embaraçosos minutos de observação por parte do senhor do qual não me lembro o nome por nunca o ter visto antes, arranjei uma coragem tão fraca como a cobardia que normalmente mostro, e avancei. Pedi um café sem que preciso fosse perguntarem-me alguma coisa e fui sentar-me ao fundo, no local mais escondido daquele recinto. A cadeira conhecia-me e a mesa também. Então, percebi que os fantasmas existem, mas não nos perseguem. Somos nós que os perseguimos a eles. E eu deixei-me ir atrás deles. Tudo começou na época em que tudo parece fácil e, por isso, mais difícil se torna. Quase sem dar por isso, aquela pele clara e jovem e aquele sorriso malicioso e aquele corpo e aquela voz – sobretudo o aspecto físico despertou em mim algo que já sentira antes apesar da ilusão de que cada vez é diferente da última e da primeira. Só depois, o interior me conquistou e então, apaixonei-me. Aí, começou a ser diferente. Quando me apercebi e quis contar aos amigos – aquele género de segredos que se conta com alegria e entusiasmo como se de uma conquista se tratasse – houve algo que me parou, me colocou noutro filme, num papel de figuração e não de protagonista. Um grande amigo meu tinha ganho esse direito, conquistando aquele coração por mim tão desejado. Chorei sem que ninguém visse os meus olhos molhados. Se alguém tivesse visto, eu não teria sido capaz de os limpar, teria antes disfarçado com uma constipação mal-curada ou «deve ter sido algo que me entrou para o olho» ou ainda «tenho alergia ao ar. E à chuva. E ao Sol. E à neve, apesar de nunca nevar por aqui». De qualquer maneira, eu não tinha o direito de estragar a felicidade de duas pessoas de quem gostava de forma diferente, mas que tinham lugar cativo no meu coração. Julgava eu. Fiz tudo para que não se apercebessem do meu sentimento por aquela adolescente aparentemente rebelde e que, no fundo, comparada comigo, não passava de uma pacifísta consternada. E ninguém se apercebeu. Já nessa altura o café era frequentado pelo grupo que incluía o casal e outros amigos aos quais eu nunca me atreveria a juntar. Não naquele café. Lá, eles brincavam com possíveis casamentos que eu sabia serem impossíveis. Até nos nomes mexiam, por piada, acrescentando o sobrenome dele ao nome completo dela. Não me conseguia rir disso e seria incapaz de explicar porquê se mo perguntassem. Por isso, nunca me juntava. Não naquele café. Passou pouco tempo. O inevitável aproximava-se e penso que não foi longe dali que o romance acabou sem glória para nenhum dos lados. Não tenho a certeza se foi naquele ou noutro café ou em casa de alguém, mas sei que não pode ter sido longe porque tudo estava ali tão perto... Demasiado perto. E a esperança renasceu juntamente com uma pena sincera de que aqueles meus amigos não tivessem sido felizes juntos. Podia ter festejado a derrota daquele relacionamento mas, também, não era nenhuma vitória para mim. Aproximei-me dela. E ela aceitou a aproximação, ignorando a verdadeira razão. Sim, foi no carro que, passadas poucas semanas, lhe contei o que ela parecia ter percebido já há algum tempo – que a amava. Sim, foi dentro do meu carro, com aquele chato de merda do «amigo» dela a bater no vidro e a querer entrar – no carro e na conversa – que eu lhe mostrei o que sentia. Não precisei de pronunciar as palavras mágicas para que ela me entendesse. A linguagem é universal. Vê-se nos olhos, nas mãos, nos lábios, em tudo mais do que nas palavras. E ela percebeu-me. Entendeu-me. Compreendeu-me. Aceitou-me... como amigo. E foi para aquele café que fui chorar mais uma vez em silêncio a perda de mais um sonho, talvez de uma ilusão. Foi ali, sentado na cadeira que ainda não me conhecia bem nessa altura, que eu os vi falar sem perceber – nem procurar perceber – nada do que diziam. Sorriam-me e disso eu apercebia-me. Saí dali e fui para casa chorar durante meses. (...) Carlos Luís Ramalhão Damon at 3:58 da tarde
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outras praias
where words come together as waves, blue and beautiful, dying in the whiteness, but repeating themselves like music notes, from sunrise to sunset to sunrise again. um livro: «Saudades de Nova Iorque», de Pedro Paixão. um filme: «Memento». um disco: «King of limbs», Radiohead. |